sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010

Loucura


          Eduardo Galeano conta a história de um louco que vivia na praça de uma cidade qualquer da América Latina. Vivia ali o pobre homem cercado por seus silêncios. Era um louco especial aquele. Conhecido por todo o povoado, passava seu tempo tocando um violão imaginário. Ninguém se aproximava dele; com ele ninguém falava. Era, apenas, o "louco do violão" cujos acordes imaginários nunca  foram ouvidos. Até que um cidadão, compadecido daquela imagem muda, abordou o  louco. Consta que conversaram longamente; que trocaram idéias e que se surpreenderam. O cidadão, então, resolveu presentear o louco. Por óbvio, escolheu um violão de verdade e o ofereceu no segundo contato. Nosso personagem, então, emocionado, agradeceu o presente e disse: "Muito obrigado; agora eu tenho dois."  

           Esta singela história guarda em si alguns ensinamentos quanto a loucura: primeiramente cabe identificar que os ditos loucos possuem o direito ao espaço público, as praças. Segundo que é possível criar vínculos entre aqueles que consideramos “normais” e os outros prisioneiros de seus delírios. Por fim, a resposta do louco do violão mostra que não temos o direito de “normalizar” aqueles que escutam os acordes que não escutamos.1
           
           A idéia da história é simples, mas a sua mensagem ou moral da história, beira a ficção. A doença mental, longe de ser tratada como um desequilíbrio  causador de sofrimento, foi, e é ainda, tida como uma ameaça a ordem moral e social, logo passível de confinamento e exclusão. Nas sociedades tribais era comum vincular o louco a alguma possessão demoníaca, idéia recorrente também na antiguidade clássica. Nem sempre, no entanto, foi delegado a ele o status de excluído. Em algumas sociedades tribais ele era até visto com um certo destaque por possuir a “mensagem dos deuses”. Na  sociedade ocidental, no entanto, ele ocupou o lugar deixado pelos antigos leprosos outra parcela de doentes excluídos do convívio com os sãos.
          
           Os antigos leprosários, onde eram depositados aqueles que tiveram o seu destino traçado pela doença física, deu lugar no século XVI a toda espécie de excluído da sociedade: mendigos, criminosos, prostitutas, doentes mentais, etc.
               De acordo com Foucault (1997), só a partir de séc. XVII é que o louco passa a ser reconhecido e tratado enquanto tal. Inicialmente, era tratado como sujeito social insano, não dotado de razão. Posteriormente, quando a loucura passa a ser objeto para o conhecimento humano, ela se torna doença mental ao final do século XVIII. A psiquiatria surge, então, historicamente, filiada a uma prática social sistemática de reclusão de incapazes por um lado e por outro a um saber médico positivo que buscava a solução para um mal que afligias as pessoas.
      
              Atrelada aos paradigmas científicos da época, a psiquiatria desenvolve-se a partir de um empenho classificatório nomeando e diagnosticando os doentes que já no final do século XVIII são separados dos demais excluídos da sociedade mantendo, no entanto, a segregação; isto é, a separação destes nos manicômios e hospícios.
  
             Embora mais de 200 anos tenham se passado, a lógica da exclusão do louco, débil ou diferente prevaleceu na subjetividade e no imaginário social. Aceitar um louco que vive a beira de uma praça com um violão imaginário em nossos dias é quase tão insano quanto a insanidade que o aprisionou a um mundo paralelo. Esse pensamento se deve mais a um princípio moralizador impresso no senso comum do que o sentido real do fato.

           Na França, Philippe Pinel organizou a loucura em torno da psicopatologia. Esse tratamento, datado de 1809 é conhecido como “tratamento moral” por se basear na reeducação de maus hábitos ou vícios entendidos como excessos e causadores da loucura. Caso o tratamento não tenha sucesso são indicados recursos alternativos como banho frio para “refrescar seus espíritos ou suas fibras”; sangue fresco para renovar sua circulação perturbada e a técnica da agressão física que procurava provocar no paciente impressões vivas para modificar o curso da sua imaginação. Sucessores de Pinel como Leuret2 utilizava a ducha como forma de punição: “não se deve mais aplicá-la quando o doente está “excitado”, mas quando cometeu um erro”. Durante as sessões de duchas geladas, Leuret forçava seus “pacientes” a confessar que sua crença era apenas delírio. Nessa linha, a máquina rotatória onde se colocava o doente a fim de amainar seus espíritos delirantes, foi utilizada no século XIX como forma de punição a cada manifestação delirante. O doente era colocado na máquina até o desmaio.

                As sanções impostas a partir do estabelecimento da psicopatologia tinham que seguir imediatamente a qualquer desvio em relação a conduta “normal”. O saber médico, atrelado aos princípios da normatização social criaram distorções perigosas ainda no século XIX que reverberaram até meados do século XX3. A polemica da eletroconvulsoterapia (ECT) é até hoje questionada sobre os fatores terapêuticos de tal procedimento além do fato dela também ter sido usada como sanção punitiva em muitas ocasiões.

                  O moralismo demonstrou ter prevalecido sobre a atenção ao doente, bem como a falta de reconhecimento das dificuldades de tratamento, no sentido de valorizar-se também outros métodos. Isso acabou resultando num fechamento teórico, muito bem intencionado, pois parecia prometer a cura, e numa conseqüente tendência ao aprisionamento da loucura.

                   Foucault (1996) refere-se ao hospital psiquiátrico como sendo um lugar que não exclui os indivíduos mas que “liga-os a um aparelho de correção (...) de normalização dos indivíduos (...) Mesmo se os efeitos dessas instituições sejam a exclusão do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixá-los as normas, as regras, aos hábitos sociais (...) Trata-se, portanto , de uma inclusão por exclusão.
         
                     Para Foucault (2000), os manicômios não tem vocação médica alguma; não se é admitido para ser tratado, mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade. O internamento que o louco recebe não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos.

              Não seria possível pensar uma sociedade sem loucura; trata-se de uma produção social negada enquanto lhe sendo parte. A loucura como o estigma maior da anormalidade cumpre o lugar das “indecências da normalidade”, os não-lugares por vezes ocupados por poetas ou artistas que devem, necessariamente, compor as maledicências sociais. O que seria do normal se não houvesse os “anormais” a quem pudessem referir como falhos, vis, indecentes e insanos? Ou, o que seria da polícia sem o bandido, do estado sem o povo ou da regra sem o impulso? O que existe como princípio resguarda o seu contrário.

              Para Pagot (2000), a loucura em suas relações com o social assume um lugar que se pode chamar o de uma presença excluída ou de uma exclusão presentificada. Ser um sujeito normal é estar circunscrito aos lugares e territórios autorizados, assumindo comportamentos ditos homogêneos e qualquer modo dissonante de existir ou gesto não encontrará receptividade. Essa categorização garante a inclusão; no entanto, ela não dá espaço a diferença. Na música de Raul Seixas, “um sujeito normal fazendo tudo igual”.

              O louco sofre pela desrealização e o alheamento, sua sina é por demais sofrida para ser relativizada ou minimizada como um problema de maus hábitos. Como toda a doença, ela anuncia e denuncia um desequilíbrio que tanto pode ser físico, quanto mental, social, espiritual, etc. O louco no seu delírio expõe, não só a sua fragilidade, mas todas as mazelas de uma sociedade que é incapaz de enxergar a si mesmo, de valorizar o outro e de aceitar a diferença.

              Em 1992 foi aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica no RS. A proposta era acabar com o modelo de asilamento então vigente por outra que buscasse resgatar a cidadania e o sentido verdadeiro da palavra saúde ao portado de sofrimento mental. Os donos dos “hospitais” psiquiátricos se levantaram contra a proposta e ainda hoje ressoam discussões que apontam a reforma como responsável pelo fim dos leitos psiquiátricos no Estado. No entanto, foi esta proposta que trouxe a possibilidade dos ditos loucos voltarem a tocar os seus acordes nas praças, a aprender e a ensinar, em seus diálogos com os “normais”, coisas sobre a sua singularidade. Mas, fundamentalmente trouxe a possibilidade da sociedade se reconhecer no outro valorizando o seu jeito de ser e a sua singularidade.

1 Rolim, Marcos. 2005.
2 FOUCAULT, Michel. 2000, p. 83.
3 Sobre isso vale apena assistir o filme “A Troca” protagonizado por Angelina Jolie em que o seu personagem é recluso, junto a outras tantas pessoas, em um manicômio por ter cometido a loucura de discordar das  instituições sociais estabelecidas.


Referências
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 5ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
__________________. Doença Mental e Psicologia. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
PAGOT, Angela Maria. O cotidiano da loucura: palavras de inclusão e exclusão. Dissertação de
Mestrado. UFRGS. 2000.
PESSOTTI, Isaías. O Século dos Manicômios. São Paulo: Editora 34, 1996.
Rolim, Marcos. 2005
http://www.rolim.com.br/2006/index.php?option=com_content&task=view&id=186&Itemid=3