domingo, 29 de julho de 2012

MUDE


Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa. Mais tarde, mude de mesa.

Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua. Depois, mude de caminho, ande por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você passa.

Tome outros ônibus.

Mude por uns tempos o estilo das roupas. Dê os seus sapatos velhos. Procure andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira para passear livremente na praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.

Veja o mundo de outras perspectivas.

Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da cama... Depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de tv, compre outros jornais... leia outros livros.

Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida. Ame a novidade. Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores, novas delícias.
Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o novo prazer, o novo amor.
A nova vida. Tente. Busque novos amigos.
Tente novos amores. Faça novas relações.
Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida, compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado... outra marca de sabonete, outro creme dental... Tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores. Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos, escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco. Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só. E pense seriamente em arrumar um outro emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno, mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem destino. Experimente coisas novas. Troque novamente. Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia. Só o que está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena! 
Edson Marques
www.edsonmarques.com


INCIVILIDADE, TRÂNSITO E (NÓS?) OS CULPADOS.


A música de Chico Buarque nos alça a flutuar  “como um se fosse um príncipe”; expondo o que todos nós já sentíamos, mas que nem sempre conseguimos expressar,  que é o fato de que a rua como espaço público, igualitário, no Brasil não é de todos.  Podemos imaginar ser um príncipe com seu séquito de seguranças e sua limusine blindada, mas, se por um infortúnio da vida somarmo-nos as estatísticas  das vítimas do  asfalto a ferros neste país, não seremos mais do que  um número no rol de perdas (necessárias?) do trânsito.

A música retrata algo que o antropólogo Roberto DaMatta apontou em seu estudo sobre o trânsito[1] em que  mostra  como aprendemos, tacitamente,  a hierarquia do espaço público. Em outras palavras, aprendemos que as ruas são  de todos os iguais, mas com a ressalva que “alguns são mais iguais que outros”.  Nossa herança aristocrática  conduz-nos por ruas onde existir significa ser visto e “preferencial” é a condição de quem pode,  não daquele comum que trafega quase pedindo licença e acenando alguma deferência, como o pobre o ciclista ou pedestre.  No trânsito vale mais quem tem tamanho e marca. Não é à toa que as SUVs são preferência do público, seu status é superior em luxo e tamanho.

A imprudência e a incivilidade do trânsito no Brasil decorre da ausência de uma visão igualitária de mundo. Em um espaço comum como as ruas, costumamos  reproduzir nossos mais primitivos instintos psicológicos; a saber: o individualismo, a competitividade e a agressão. Tal qual um nenê, queremos ser o “centro do mundo”, buscar o nosso prazer a qualquer custo e disputar espaço nem que isso envolva tirar o que é do outro ou “jogar” o nosso carro sobre  o pedestre, ciclista, motociclista ou os carros “inferiores” e desqualificados por sua marca,  ano de fabricação ou tamanho.  

A situação se torna verdadeiramente grave quando percebemos que esta conduta não amadurece conforme os anos vão passando.  O que pode justificar isto, visto que crescer e amadurecer, biopsicologicamente,  não é uma opção, mas uma condição da vida?   Voltemos a DaMatta que nos aponta um outro viés do comportamento do brasileiro que talvez explique esta conduta imatura  no trânsito: a congênita prática de desrespeito às leis.

Este é um aspecto  contraditório , pois qualquer pesquisa com motoristas no Brasil aponta o não cumprimento das leis e a impunidade como um dos fatores geradores do caos. O mais intrigante é que a maior parte destes motoristas entende que a fiscalização deva ser mais efetiva sobre os outros, mas se sente extremamente ofendido quando é interpelado, pois aguarda em fila dupla o filho que sai da escola ou transita pela ciclovia ou pela direita que está vazia ou, ainda, quando é multado por estacionar em cima da calçada quando não ia demorar mais do que poucos minutos. 

O fato é que há uma dificuldade imensa do brasileiro em obedecer às leis. A subordinação é tida por estes como uma inferiorização, pois aqui historicamente atrelamos as leis a quem deve subserviência  que,  no imaginário social, significa  ser o trabalhador braçal (o escravo no Brasil imperial).  Às elites, tidas aqui como qualquer ator da classe média ou alta mandam. Despreza-se a questão óbvia de que aquele que manda também deve obediência as leis que regem a convivência social, principalmente na representação maior desta convivência que é o trânsito.  O fato é que boa parte das leis que orientam  esta  convivência social não foram introjetadas, isto é, tornadas verdades para cada um. A fala que vem dos nossos motoristas costuma apresentar a idéia de que cada um “respeita” o trânsito. Hora, respeitar não é o mesmo que obedecer, esta condição pode estar atrelada ao meu “bom humor” ou a existência de um fiscal de trânsito à minha frente, mas não é necessariamente uma conduta internalizada (ou visceral).   
                
Não é somente aumentando o número de fiscais ou  reforçando a punição que resolverei o problema do trânsito no Brasil, mas é sim criando  políticas de educação para trânsito que contemple o motorista, o pedestre, o ciclista, motociclista, caminhoneiro, a criança, etc. Todos fazemos parte deste universo modal e a forma como atuamos neste campo, diz muito de nosso jeito de ser, de nossa cultura.  Culpamos muitas vezes,   com razão,  o governo pelo extermínio compulsivo de vidas que ele promove, mas assim o fazendo nos eximimos de culpa deslocando a responsabilidade para o outro.
              
Mas o fato é que somos tão culpados quanto nossos  vizinhos que marcadamente usam o trânsito como  expressão de poder, pois referendamos um jeito de ser motorista nos nossos pequenos gestos de intolerância e de hierarquização do espaço público.  A humildade é um exercício  de autoconhecimento, pena que poucos  conseguem usar desta prática no trânsito.

O carro se transformou  no melhor exemplo de um comportamento cultural...Ele é a marca de nossas diferenças , tanto pelo estilo quanto pela forma que o utilizamos. Enquanto não compreendermos que a nossa vida é única em uma sociedade que dependemos uns dos outros, continuaremos a dirigir como se fôssemos donos do espaço público sem entender que aquele que “morreu atrapalhando o tráfego” era mais uma vítima da nossa insensibilidade e ignorância.  


[1] “Fé em Deus e pé na tábua”.

JORNADA PARA DENTRO DE SI MESMO


Diz uma história antiga que uma pessoa foi para o céu e lá chegando foi colocada diante do tribunal de Deus que então a inquiriu:  Quem é você? Pergunta fática, existencial. Ela prontamente respondeu:  sou a mulher do prefeito municipal. Perguntei quem és tu, não quem é o teu marido. – Sou mãe de quatro filhos... Não quero saber quantos filhos tivestes. Quem és tu? Sou uma mulher cristã. – Não quero saber qual a tua religião.  – Sou uma pessoa que vai a missa e que auxilia os pobres e necessitados... E assim, sucessivamente as perguntas se desenrolavam sem que a mulher conseguisse responder quem era ela.

 A pergunta é simples, mas as respostas são em geral  estereotipadas. O que fazemos, onde trabalhamos, com quem casamos, que classe social pertencemos ou religião cultuamos, etc... Não há tempo para pensar em quem verdadeiramente somos no mundo contemporâneo. O lucro é a meta, a pressa é a chave, o trabalho é  o meio. O saber de nós mesmos é tão efêmero como uma viagem de avião; transcorre-se um continente sem nem sequer  olhar, cheirar e alçar o calor e o brilho de cada lugar.

Muitos viajam para se “encontrar”, mas a viagem do turista  é bem diferente da do peregrino.  O primeiro,  busca encurtar a viagem para descobrir as belezas do destino, ao último importa a sensação do percurso para apreender do caminho. Saber de si é o exercício de desacelerar.      Nosso Ser Integral  não comporta a pressa da máquina, mas abarca o tempo do corpo na determinação do peregrino, na força do remador,  na precisão do arremesso  e no  impulso  do ciclista.   Pedalar é como um mantra, diria Antônio Olinto,  cicloturista que deu a volta ao  mundo de bicicleta. Quem entoa um mantra, assim como quem empreende uma viagem de bicicleta, ou a pé,  quer chegar ao seu destino, mas não como quem voa de um ponto ao outro do planeta contabilizando as horas "perdidas" no trajeto, mas como quem encontra no movimento seu infinito mais íntimo.   

Esse “infinito íntimo”  foi chamado por Viktor Frankl de núcleo Espiritual. Carl Gustav Jung chamou-o  de Arquétipo do Self, ou o Arquétipo da Totalidade. A espiritualidade para estes dois psicólogos europeus tem a ver com algo central  e dinâmico na vida de cada um. Nesta perspectiva, a idéia de um mantra proposto anteriormente,  toma outra dimensão que é o de trans-formação. Esta palavra, mais do que uma mudança de um estado a outro, significa um formar além,  ou uma formação em processo.

A espiritualidade é o mote e o motivo do peregrino. A todos  que ousam atravessar o “deserto” do mistério da vida, cabe o encontro com o sentido da integridade  que vincula  o ser ao  cosmos, àquilo que entendemos como o sentido ecológico da vida.  Não é a toa que tantos, e cada vez mais, se aventuram  pedalando e caminhando   numa busca solitária que resulta na ampliação da consciência.  A espiritualidade está no caminho, e ela não pode ser dada para  ninguém, mas deve ser desvelada por cada um.

Enganam-se aqueles que pensam que a espiritualidade  é o mesmo que religião, elas podem, e em alguns casos se complementam, mas jamais se confundem. A Espiritualidade existem desde  que o Ser Humano surgiu na Terra a mais de 200 mil anos. A religião não tem mais de que 8 mil anos. A religião é a institucionalização da espiritualidade, como a família  o é do amor. Na religião predomina a voz exterior da autoridade religiosa, na espiritualidade é a voz interior.   A religião culpabiliza,  a espiritualidade ensina a aprender com os erros. A religião ameaça, a espiritualidade encoraja. A religião surge com  o  sedentarismo;  a espiritualidade surge no caminho da transcendência, isto é, no caminho que leva cada pessoa além de si mesma. Ao caminho  que garanta o sentimento de pertencimento e que vincule  e interligue o indivíduo ao outro.  Espiritualidade  é a conjunção dos desejos do eu  com o destino do cosmos.  Aquele momento único e fortuito que nos sentimos completos e  em harmonia com o mundo.

Esse sentimento de plenitude, ou esse “infinito mais íntimo” pelo qual nos referimos  tem um nome de Deus. Mas ele não é, como comumente pensamos, fruto de uma crença, mas é o resultado de uma experiência individual e profunda. Como disse Jung,  quando questionado sobre se acreditava em Deus: “eu não acredito, eu sei”.  Deus é uma experiência de integralidade e totalidade. Ele não está nos céus, nas montanhas ou nos templos,  mas ele está no caminhos que criam pontes e geram plenitudes.

Não sabemos dizer quem somos, pois esquecemos de olhar para dentro. Cultuamos o nosso status, referenciamos o nosso dinheiro e cultivamos  nosso individualismo egoísta.  Resta-nos desejar que todos os peregrinos e pedalantes nos redimam de tanta inconsciência e nos auxiliem a nos “encontrar”.