Diz uma história antiga que uma pessoa foi para o céu e lá
chegando foi colocada diante do tribunal de Deus que então a inquiriu: Quem é você? Pergunta fática, existencial.
Ela prontamente respondeu: sou a mulher
do prefeito municipal. Perguntei quem és tu, não quem é o teu marido. – Sou mãe
de quatro filhos... Não quero saber quantos filhos tivestes. Quem és tu? Sou
uma mulher cristã. – Não quero saber qual a tua religião. – Sou uma pessoa que vai a missa e que
auxilia os pobres e necessitados... E assim, sucessivamente as perguntas se
desenrolavam sem que a mulher conseguisse responder quem era ela.
A
pergunta é simples, mas as respostas são em geral estereotipadas. O que fazemos, onde
trabalhamos, com quem casamos, que classe social pertencemos ou religião
cultuamos, etc... Não há tempo para pensar em quem verdadeiramente somos no
mundo contemporâneo. O lucro é a meta, a pressa é a chave, o trabalho é o meio. O saber de nós mesmos é tão efêmero como
uma viagem de avião; transcorre-se um continente sem nem sequer olhar, cheirar e alçar o calor e o brilho de
cada lugar.
Muitos
viajam para se “encontrar”, mas a viagem do turista é bem diferente da do peregrino. O primeiro, busca encurtar a viagem para descobrir as
belezas do destino, ao último importa a sensação do percurso para apreender do
caminho. Saber de si é o exercício de desacelerar. Nosso Ser Integral não comporta a pressa da máquina, mas abarca o
tempo do corpo na determinação do peregrino, na força do remador, na precisão do arremesso e no impulso do ciclista. Pedalar é como um mantra, diria Antônio
Olinto, cicloturista que deu a volta ao mundo de bicicleta. Quem entoa um mantra,
assim como quem empreende uma viagem de bicicleta, ou a pé, quer chegar ao seu destino, mas não como quem
voa de um ponto ao outro do planeta contabilizando as horas "perdidas" no trajeto,
mas como quem encontra no movimento seu infinito mais íntimo.
Esse “infinito
íntimo” foi chamado por Viktor Frankl de
núcleo Espiritual. Carl Gustav Jung chamou-o
de Arquétipo do Self, ou o
Arquétipo da Totalidade. A espiritualidade
para estes dois psicólogos europeus tem
a ver com algo central e dinâmico na
vida de cada um. Nesta perspectiva, a idéia de um mantra proposto
anteriormente, toma outra dimensão que é
o de trans-formação. Esta palavra, mais do que uma mudança de um estado a
outro, significa um formar além, ou uma
formação em processo.
A
espiritualidade é o mote e o motivo do peregrino. A todos que ousam atravessar o “deserto” do mistério
da vida, cabe o encontro com o sentido da integridade que vincula
o ser ao cosmos, àquilo que
entendemos como o sentido ecológico da vida.
Não é a toa que tantos, e cada vez mais, se aventuram pedalando e caminhando numa busca solitária que resulta na ampliação
da consciência. A espiritualidade está
no caminho, e ela não pode ser dada para ninguém, mas deve ser desvelada por cada um.
Enganam-se
aqueles que pensam que a espiritualidade
é o mesmo que religião, elas podem, e em alguns casos se complementam,
mas jamais se confundem. A Espiritualidade existem desde que o Ser Humano surgiu na Terra a mais de 200
mil anos. A religião não tem mais de que 8 mil anos. A religião é a
institucionalização da espiritualidade, como a família o é do amor. Na religião predomina a voz
exterior da autoridade religiosa, na espiritualidade é a voz interior. A religião culpabiliza, a espiritualidade ensina a aprender com os
erros. A religião ameaça, a espiritualidade encoraja. A religião surge com o sedentarismo;
a espiritualidade surge no caminho da transcendência, isto é, no caminho
que leva cada pessoa além de si mesma. Ao caminho que garanta o sentimento de pertencimento e
que vincule e interligue o indivíduo ao
outro. Espiritualidade é a conjunção dos desejos do eu com o destino do cosmos. Aquele momento único e fortuito que nos
sentimos completos e em harmonia com o
mundo.
Esse
sentimento de plenitude, ou esse “infinito mais íntimo” pelo qual nos
referimos tem um nome de Deus. Mas ele
não é, como comumente pensamos, fruto de uma crença, mas é o resultado de uma
experiência individual e profunda. Como disse Jung, quando questionado sobre se acreditava em
Deus: “eu não acredito, eu sei”. Deus é
uma experiência de integralidade e totalidade. Ele não está nos céus, nas
montanhas ou nos templos, mas ele está
no caminhos que criam pontes e geram plenitudes.
Não
sabemos dizer quem somos, pois esquecemos de olhar para dentro. Cultuamos o
nosso status, referenciamos o nosso dinheiro e cultivamos nosso individualismo egoísta. Resta-nos desejar que todos os peregrinos e
pedalantes nos redimam de tanta inconsciência e nos auxiliem a nos “encontrar”.
Gostei muito deste texto, Felipe.
ResponderExcluirUm abraço, Priscila
Maravilhoso! É como se pudesse sentir o vento bater o meu rosto e sentir um cheiro diferente a cada palavra... Vou compartilhar em minha página fb/omultimoluar. Parabéns!!
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