sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

sábado, 4 de dezembro de 2010

Loucura


          Eduardo Galeano conta a história de um louco que vivia na praça de uma cidade qualquer da América Latina. Vivia ali o pobre homem cercado por seus silêncios. Era um louco especial aquele. Conhecido por todo o povoado, passava seu tempo tocando um violão imaginário. Ninguém se aproximava dele; com ele ninguém falava. Era, apenas, o "louco do violão" cujos acordes imaginários nunca  foram ouvidos. Até que um cidadão, compadecido daquela imagem muda, abordou o  louco. Consta que conversaram longamente; que trocaram idéias e que se surpreenderam. O cidadão, então, resolveu presentear o louco. Por óbvio, escolheu um violão de verdade e o ofereceu no segundo contato. Nosso personagem, então, emocionado, agradeceu o presente e disse: "Muito obrigado; agora eu tenho dois."  

           Esta singela história guarda em si alguns ensinamentos quanto a loucura: primeiramente cabe identificar que os ditos loucos possuem o direito ao espaço público, as praças. Segundo que é possível criar vínculos entre aqueles que consideramos “normais” e os outros prisioneiros de seus delírios. Por fim, a resposta do louco do violão mostra que não temos o direito de “normalizar” aqueles que escutam os acordes que não escutamos.1
           
           A idéia da história é simples, mas a sua mensagem ou moral da história, beira a ficção. A doença mental, longe de ser tratada como um desequilíbrio  causador de sofrimento, foi, e é ainda, tida como uma ameaça a ordem moral e social, logo passível de confinamento e exclusão. Nas sociedades tribais era comum vincular o louco a alguma possessão demoníaca, idéia recorrente também na antiguidade clássica. Nem sempre, no entanto, foi delegado a ele o status de excluído. Em algumas sociedades tribais ele era até visto com um certo destaque por possuir a “mensagem dos deuses”. Na  sociedade ocidental, no entanto, ele ocupou o lugar deixado pelos antigos leprosos outra parcela de doentes excluídos do convívio com os sãos.
          
           Os antigos leprosários, onde eram depositados aqueles que tiveram o seu destino traçado pela doença física, deu lugar no século XVI a toda espécie de excluído da sociedade: mendigos, criminosos, prostitutas, doentes mentais, etc.
               De acordo com Foucault (1997), só a partir de séc. XVII é que o louco passa a ser reconhecido e tratado enquanto tal. Inicialmente, era tratado como sujeito social insano, não dotado de razão. Posteriormente, quando a loucura passa a ser objeto para o conhecimento humano, ela se torna doença mental ao final do século XVIII. A psiquiatria surge, então, historicamente, filiada a uma prática social sistemática de reclusão de incapazes por um lado e por outro a um saber médico positivo que buscava a solução para um mal que afligias as pessoas.
      
              Atrelada aos paradigmas científicos da época, a psiquiatria desenvolve-se a partir de um empenho classificatório nomeando e diagnosticando os doentes que já no final do século XVIII são separados dos demais excluídos da sociedade mantendo, no entanto, a segregação; isto é, a separação destes nos manicômios e hospícios.
  
             Embora mais de 200 anos tenham se passado, a lógica da exclusão do louco, débil ou diferente prevaleceu na subjetividade e no imaginário social. Aceitar um louco que vive a beira de uma praça com um violão imaginário em nossos dias é quase tão insano quanto a insanidade que o aprisionou a um mundo paralelo. Esse pensamento se deve mais a um princípio moralizador impresso no senso comum do que o sentido real do fato.

           Na França, Philippe Pinel organizou a loucura em torno da psicopatologia. Esse tratamento, datado de 1809 é conhecido como “tratamento moral” por se basear na reeducação de maus hábitos ou vícios entendidos como excessos e causadores da loucura. Caso o tratamento não tenha sucesso são indicados recursos alternativos como banho frio para “refrescar seus espíritos ou suas fibras”; sangue fresco para renovar sua circulação perturbada e a técnica da agressão física que procurava provocar no paciente impressões vivas para modificar o curso da sua imaginação. Sucessores de Pinel como Leuret2 utilizava a ducha como forma de punição: “não se deve mais aplicá-la quando o doente está “excitado”, mas quando cometeu um erro”. Durante as sessões de duchas geladas, Leuret forçava seus “pacientes” a confessar que sua crença era apenas delírio. Nessa linha, a máquina rotatória onde se colocava o doente a fim de amainar seus espíritos delirantes, foi utilizada no século XIX como forma de punição a cada manifestação delirante. O doente era colocado na máquina até o desmaio.

                As sanções impostas a partir do estabelecimento da psicopatologia tinham que seguir imediatamente a qualquer desvio em relação a conduta “normal”. O saber médico, atrelado aos princípios da normatização social criaram distorções perigosas ainda no século XIX que reverberaram até meados do século XX3. A polemica da eletroconvulsoterapia (ECT) é até hoje questionada sobre os fatores terapêuticos de tal procedimento além do fato dela também ter sido usada como sanção punitiva em muitas ocasiões.

                  O moralismo demonstrou ter prevalecido sobre a atenção ao doente, bem como a falta de reconhecimento das dificuldades de tratamento, no sentido de valorizar-se também outros métodos. Isso acabou resultando num fechamento teórico, muito bem intencionado, pois parecia prometer a cura, e numa conseqüente tendência ao aprisionamento da loucura.

                   Foucault (1996) refere-se ao hospital psiquiátrico como sendo um lugar que não exclui os indivíduos mas que “liga-os a um aparelho de correção (...) de normalização dos indivíduos (...) Mesmo se os efeitos dessas instituições sejam a exclusão do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixá-los as normas, as regras, aos hábitos sociais (...) Trata-se, portanto , de uma inclusão por exclusão.
         
                     Para Foucault (2000), os manicômios não tem vocação médica alguma; não se é admitido para ser tratado, mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade. O internamento que o louco recebe não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos.

              Não seria possível pensar uma sociedade sem loucura; trata-se de uma produção social negada enquanto lhe sendo parte. A loucura como o estigma maior da anormalidade cumpre o lugar das “indecências da normalidade”, os não-lugares por vezes ocupados por poetas ou artistas que devem, necessariamente, compor as maledicências sociais. O que seria do normal se não houvesse os “anormais” a quem pudessem referir como falhos, vis, indecentes e insanos? Ou, o que seria da polícia sem o bandido, do estado sem o povo ou da regra sem o impulso? O que existe como princípio resguarda o seu contrário.

              Para Pagot (2000), a loucura em suas relações com o social assume um lugar que se pode chamar o de uma presença excluída ou de uma exclusão presentificada. Ser um sujeito normal é estar circunscrito aos lugares e territórios autorizados, assumindo comportamentos ditos homogêneos e qualquer modo dissonante de existir ou gesto não encontrará receptividade. Essa categorização garante a inclusão; no entanto, ela não dá espaço a diferença. Na música de Raul Seixas, “um sujeito normal fazendo tudo igual”.

              O louco sofre pela desrealização e o alheamento, sua sina é por demais sofrida para ser relativizada ou minimizada como um problema de maus hábitos. Como toda a doença, ela anuncia e denuncia um desequilíbrio que tanto pode ser físico, quanto mental, social, espiritual, etc. O louco no seu delírio expõe, não só a sua fragilidade, mas todas as mazelas de uma sociedade que é incapaz de enxergar a si mesmo, de valorizar o outro e de aceitar a diferença.

              Em 1992 foi aprovada a Lei da Reforma Psiquiátrica no RS. A proposta era acabar com o modelo de asilamento então vigente por outra que buscasse resgatar a cidadania e o sentido verdadeiro da palavra saúde ao portado de sofrimento mental. Os donos dos “hospitais” psiquiátricos se levantaram contra a proposta e ainda hoje ressoam discussões que apontam a reforma como responsável pelo fim dos leitos psiquiátricos no Estado. No entanto, foi esta proposta que trouxe a possibilidade dos ditos loucos voltarem a tocar os seus acordes nas praças, a aprender e a ensinar, em seus diálogos com os “normais”, coisas sobre a sua singularidade. Mas, fundamentalmente trouxe a possibilidade da sociedade se reconhecer no outro valorizando o seu jeito de ser e a sua singularidade.

1 Rolim, Marcos. 2005.
2 FOUCAULT, Michel. 2000, p. 83.
3 Sobre isso vale apena assistir o filme “A Troca” protagonizado por Angelina Jolie em que o seu personagem é recluso, junto a outras tantas pessoas, em um manicômio por ter cometido a loucura de discordar das  instituições sociais estabelecidas.


Referências
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 5ª.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
__________________. Doença Mental e Psicologia. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
PAGOT, Angela Maria. O cotidiano da loucura: palavras de inclusão e exclusão. Dissertação de
Mestrado. UFRGS. 2000.
PESSOTTI, Isaías. O Século dos Manicômios. São Paulo: Editora 34, 1996.
Rolim, Marcos. 2005
http://www.rolim.com.br/2006/index.php?option=com_content&task=view&id=186&Itemid=3

domingo, 28 de novembro de 2010

Super-ação e Amor

Até onde vai  o amor?

É uma pergunta simples com uma resposta direta: até onde pudermos sonhar!  Ignoro alguns preceitos bíblicos, dentre os quais aquele que diz que seremos julgados na eternidade. Se existir um juízo final, somente os sonhos não sonhados nos serão cobrados.  Pois a incapacidade de sonhar  é a condição daqueles  que já morreram em vida.
Esta idéia surge quando assisto novamente um vídeo que vem circulando pela internet a alguns anos e que ainda me causa emoção mesmo após tê-lo assistido no mínimo umas 50 vezes. É a história de Dick e Rick Hoyt ou, como gostam de ser chamados “Team Hoyt”.  Rick teve um problema no parto o que ocasionou a falta de oxigênio no cérebro causando lesões irreversíveis com conseqüências motoras e também na fala. A prática médica de 40 anos atrás sugeriu ao pai Dick que o exilasse em uma instituição apta a “cuidar” desses casos.  Felizmente, neste caso, o amor falou mais alto do que o modelo de ciência médica vigente,  e o pai resolveu criar o filho com todas as possíveis limitações que ele viria a ter, mas que,  certamente,  não seria a limitação do amor.
Vale a pena assistir a reportagem do Fantástico[1] sobre  eles, Dick e Rick já participaram de mais de 3 IRONMAN  no Hawai considerada uma das provas mais difíceis do planeta.  É comovente entender o processo que levou Rick a se apaixonar por esta modalidade esportiva. O que estava por trás do desejo de superação era o desejo de solidariedade, pois foi participando de uma prova beneficente em prol de um colega acidentado que Rick entendeu que o  significado da vida  está na possibilidade  de superar a  si mesmo.  “Para conquistar algo que valha a pena, o ser humano deve superar a si mesmo”!
Rick  diz que quando está competindo é  como se não tivesse nenhuma deficiência. Penso eu em todas as minhas pequenas e grandes deficiências e os limites que me  imponho constantemente. Em sua grande maioria, as pessoas são seres de barreiras. O pior de tudo, é que estas barreiras não são visíveis, é como o medo: uma prisão sem grandes que erigimos em nome do controle, da decência, da comedidade, da razão e da prudência. Os seres humanos se resignam a ser o que são, pois não crêem ser algo além.
Me lembrei de Nietzsche que  foi um filósofo que viveu no século XIX e que  não teve uma vida muito afortunada. Muito antes pelo contrário, com saúde débil, viu morrer o  pai quando ainda criança, sem dinheiro e sem o reconhecimento dos outros, teve que suportar o  desprezo e a ira de boa parte de seus contemporâneos que não entendiam o que ele escrevia. Mas Nietzsche foi magnânimo em pensar que o sofrimento nada mais é do que o combustível para superação.  Há que se sofrer para enxergar a vida de outra forma, há que se ter limites para perceber que não há como fugir daquilo que nos desafia. A felicidade não é a fuga dos problemas, mas devemos cultivá-los para extrair algo positivo dele.
Fico com Rick e com Dick citando, ainda mais um pouco Nietzsche:  “Aquilo que não me mata, me fortalece!”.
Paz
Out.2010




[1] http://www.youtube.com/watch?v=cpzxBw-0XB4&feature=related

domingo, 14 de novembro de 2010

Soneto do Amor Total







Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinícius de Moraes

domingo, 31 de outubro de 2010

ARTE DE EVGEN BAVCAR, O FOTÓGRAFO CEGO


Nietzsche que morreu louco, mas não condicionado  e normatizado,  dizia que     "para conquistar algo  que valha a pena o homem deve superar a si mesmo".   EVGEN BAVCAR corporifica esta idéia,  pois se fosse seguir a ordem  natural do senso comum teria abandonado  seu desejo  infantil de   ser fotógrafo quando  aos 13 anos perdeu totalmente a visão.   Mas não! Ele fez exatamente o contrário:  persistiu no seu sonho.  Penso como Leminski que somente os sonhos não sonhados nos serão cobrados na eternidade.  O mundo da resignação e acomodação não é o mundo de Bavcar, sua visão expande os limites  de nossa materialidade espacial. Ele nos fala de coisas que vão além das nossos possibilidades de enxergar. Algo do seu  universo inconsciente, da sua singularidade.    Faz- nos pensar que o mais difícil  não é lutar contra os limites impostos pela realidade concreta, mas sim, contra  as grades que erigimos dentro de nós mesmos.  Uma prisão sem grandes  que nos impossibilita de ser o que somos, tão fadados que  estamos a realidade do  "outro" ,  do mundo , da sociedade, da norma, da regra, do determinismo. 


Felipe André Aço

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A DOENÇA COMO CURA

“Por isso, se quiser que a cabeça e o corpo estejam bem, 
você deve começar curando a alma”.
Platão
Frida Kahlo



“A  Imagem é sempre pior que o trauma!”
 Esta frase, ouvida de um oficial do corpo de bombeiros, se refere provavelmente, aos golpes externos da violência quotidiana, pelo qual eles são freqüentemente convocados a intervir. Trazendo esta afirmação para o âmbito da psicologia, podemos entender o trauma  como uma cisão ou ruptura provocada por forças internas divergentes; e a imagem como a doença que se estabeleceu a partir da angústia do conflito. Para um corpo doente, no entanto, a relação é inversa, isto é, o trauma é pior do que a imagem ou, para sermos mais técnicos, é pior do que o sintoma que se estabelece.
Esta idéia nos parece contraditória, visto que é no sintoma que manifestamos a nossa dor. É através do sintoma que desvelamos a nossa sombra (nosso lado frágil), e é por causa do sintoma que normalmente as pessoas procuram ajuda. O conflito em geral é dissociado da doença, não por vontade ou necessidade do sujeito, mas porque este conflito, ou trauma, nem sempre é conhecido.
O vocábulo sintoma vem do grego sýmptoma e significa sinal, algo que anuncia uma desorganização na totalidade da vida de da pessoa. Sin-toma é a resposta que a alma dá a um desequilíbrio gerado por uma angústia não mentalizada ou, como se diz, “não-resolvida”. A doença, neste contexto psicológico, é uma tentativa de nossa psique em resolver algum conflito que delegou uma angústia não consciente, porquanto presente. É na tentativa de não sofrermos esta angústia que nosso  corpo adoece. Ele busca no sintoma uma forma de representar o não-dito, ou o mal-dito, aquilo que pulsa nos labirintos da alma e exige um reconhecimento, uma gratificação.
Desta forma, a doença aparece como um tentativa de cura. A palavra cura significa cuidado, atenção à singularidade qu é a vida humana. Pela incapacidade de trazer à consciência os símbolos de sua alma, o próprio  corpo se encarrega de reprsenar a falta e o conflito. Assim surge a asma, a úlcera, vários tipos de doenças de pele  e a enxaaqueca. Não é difícil  descobrir em muitos ataques de asma a incapacidade do sujeito em assimilar o seu quotidiano presente. Tão pouco é raro descobrir no ulceroso sua insufiente elaboração de conteúdos guardados; e a fraqueza nos relacionamentos interpessoais dos pacientees com dermatites. Um fundo depressivo no paciente com enxaqueca? Baixa auto-estima? Desilusão? Quem sabe....
Carl Gustav Jung, psicólogo suíço, dizia que o pior pecado de todos é a inconsciência. A pior alta que podemos cometer é não saber do que sofremos. Sofrer de não saber sofrer...Podemos entender a sintomatologia que nos acomete e sentir a dor que nos corrói, mas se não nos conscientizarmos das nossas fraquezas, e não aprendermos com o nosso limite, morreremos de um sinal que nos queria salvar. Nietzsche dizia que a doença o havia libertado, pois devolveu-lhe a coragem de enfrentar a si mesmo: “Devido a doença sou capaz de pensar e seentir de modo totalmente diferente.”. Este é o princípio do recomeço, o fim de um ciclo e o início de outro. Jung, após um enfarto aos sessenta e nove anos declara: “consigo agora perceber que não posso recuar diante do incompreensível. Uma derrota pode ser ao mesmo tempo uma vitória”. É no limite do corpo que reconhecemos a amplidão de nossa alma.
Felipe André Aço
2006

domingo, 10 de outubro de 2010

A construção de Gênero: feminino negado

O que é ser homem  e mulher em nossa sociedade e cultura? Indo um pouco mais além, o que é ser “gay”, travesti ou qualquer outra nomenclatura que se use para denominar a diversidade de identidades e da conduta sexual?  A referência que todos nós temos ao nascer é o nosso sexo biológico, aquilo que morfologicamente  trazemos de nossa herança genética. Em outras palavras, somos do sexo feminino ou masculino. O que construímos em termos  de identidade e personalidade vai depender, entre outros fatores, de nossa vivência, nossa cultura, família e possibilidades. Esta configuração de ser é o que chamamos de identidade de gênero.




 Em nossa sociedade existem muitas configurações de identidades de gênero. Para cada uma delas somam-se um universo de idéias, suposições, expectativas e preconceitos. Nem sempre a identidade  biológica está em convergência com a identidade de gênero. Ainda assim, há uma necessidade de “ajuste” do indivíduo a expectativa  social, isto é, ao lugar de homem e mulher.

O gênero masculino e feminino tem uma história de construção social e cultural  de milhares de anos em nossa cultura ocidental.  O lugar  de quem supre, de quem é forte, ativo, dominante e referência foi consolidado por milhares de anos de evolução da humanidade e reafirmado na Idade Média com  o domínio da igreja. O homem tomou lugar de quem coordena, dirige e decide. A mulher, pelo contrário, coube a função de ser mãe, meiga, “doce”, servil e submissa.

É certo, porém, que estes lugares ocupados tanto por homens quanto por mulheres em nossa civilização, vem mudando muito nestes últimos  40 anos.  Hoje,  grande parte das mulheres trabalham fora de casa, o que não acontecia em gerações precedentes. Da mesma forma, as mulheres têm conquistado o espaço acadêmico e são, hoje,  maioria nas universidades.  Por seu viés, os homens  também vêem em um processo de trans-formação de papéis:  isso pode-se constatar  na sua relação com os filhos e o compromisso com a casa e os afazeres domésticos.

Muito embora os papéis que vimos desempenhando na contemporaneidade estejam se transformando e intercambiando a mutação subjetiva, isto é, o nosso jeito de ser, sentir e perceber o outro não muda com a mesma rapidez e intensidade.

As mulheres hoje trabalham, mas ainda causa desconforto ao marido quando a mesma ganha mais do que ele. Elas não só podem, como devem  ter desejo sexual. Vale lembrar que durante toda a idade média até meados do século XX a idéia de sexo estava atrelada a reprodução. Aos homens se fazia “vistas grossas” quanto a necessidade instintiva de sexo. Quanto a elas, era pudico se preservar para o marido. Mesmo depois de casadas,  o ato sexual sem a intenção reprodutiva era um pecado grave, pois impingia o prazer.  O prazer, como todos sabem, já havia sido execrado junto com Adão e Eva do Paraíso.  Da mesma forma, hoje as mulheres podem exercer qualquer profissão, mas há quem desconfie das mesmas pilotando aviões, dirigindo ônibus ou sendo juízas de futebol e o velho preconceito quanto as mulheres no trânsito é reafirmada constantemente: “só podia ser mulher!”

Um filme antigo, mas muito interessante chamado “Acorda Raimundo”[1] expõe com ironia o “lugar” de homem e mulher  em nossa sociedade. Neste vídeo, o homem e a mulher invertem os papéis. Embora  as condutas masculino-feminino estereotipadas no filme  não sejam hoje  tão rígidas,  é evidente o preconceito  que erigimos em nossa sociedade. As diferenças segmentadas nos papéis que cada gênero desempenha ficam em evidência no vídeo. Surpreende-nos pela perspectiva de que algo tão corriqueiro possa ser ao mesmo tempo dramático quando se invertem os papéis. 

O comportamento de gênero é parte de um processo de subjetivação. Em outras palavras, a educação, a família, a publicidade, a política a cultura  vão inundando a nossa psique com símbolos, signos, regras, marcas, hábitos e condutas que tornam real e verdadeiro aquilo que é da construção social.  Por isso somos subjetivados,  por assumir como nossas íntimas verdades conceitos e modos de ser  que são construções histórico-culturais.

 Essas nuances que  constituem nossa subjetividade, dizem respeito, por exemplo,  a frases do tipo:  “menino não chora” ou  “isso é com o teu pai”  quando se quer  referir a alguma atitude mais enérgica que deva ser exercida, tais como quando estas envolvem dinheiro e limites. Nas trocas e confissões amorosas, a mulher, muitas vezes expõe na fala a condição de dependência que historicamente foi assumindo: “eu sou tua”, é a condição de dependência aprendida. Ao homem é dado a autonomia; a mulher,  a heteronomia ou a alienação de sua  autonomia ao outro. No campo da linguagem, ao   homem é delegado o patrimônio;  a mulher, o matrimônio.  Não é por isso, por sinal, que o pai dá a mão da filha para o noivo? “Para troca de propriedade?” Não pertence mais ao pai, mas agora é do marido. Cabe a ela perseverar no matrimônio. Até bem pouco tempo atrás não era permitido a elas terem seus nomes atrelados a propriedades, visto elas também serem uma, haja vista, por exemplo, a inscrição do sobrenome do marido em seu próprio nome, como um “registro” ou certificação.   

Ao homem é dado a atividade, a mulher, a passividade. Neste segmento sofre a mulher, mas igualmente, o homem que tem que “manter a sua fama de mau”, ou garantir ser tão forte, violento e agressivo quanto é a expectativa social do masculino. Àqueles que não conseguem isso, certamente sente-se deslocados socialmente.

Não é de hoje que a mobilização feminina gera reações institucionais e coletivas. Alexandria no Egito no século IV  viu surgir  uma mulher  chamada HIPÁTIA[2]   que foi uma das únicas mulheres da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa. Ela trabalhou na lendária biblioteca de Alexandria substituindo aos 30 anos o cargo de professor,  do não menos importante Plotino. Também foi diretora desta Academia onde estudou e ajudou a criar o astrolábio, o planifério (espécie de mapa)  e o hidrômero (hidrômetro).

Por ensinar que o universo era regido por leis matemáticas, Hipátia foi  considerada herética. Em 415 instigados por Cirilo – bispo de Alexandria – Hipatia foi atacada por cristãos enfurecidos levada a uma igreja, esfolada com  cacos de cerâmica e conchas e após assassinada, seu  corpo foi atirado em  uma fogueira.  Qual foi o erro de Hipátia? Estudar, pesquisar, conhecer eram atributos comuns a uma certa classe masculina da época. Mas, ainda assim, foi ela a perseguida e morta. Talvez o erro de Hipátia tenha sido o de querer existir indo além do comum obtendo, portanto,  visibilidade.

Pode-se argumentar que esta é uma história que aconteceu 1600 anos atrás, logo  não conta para se falar de violência contra mulher ou violência de gênero que hoje estamos presenciando.  No entanto, podemos “lançar mão” de um outro exemplo, acontecido  em 2009 em São Bernardo do Campo-SP:

Uma universitária é vilipendiada, execrada, humilhada e ofendida  por cometer o crime de usar uma saia “indecente”. O que aconteceu com ela?  Não foi esquartejada como fora Hipátia porque houve a intervenção policial. Afora isso, teve sua integridade atingida, sua moral  destroçada e com certeza sua auto estima leiloada por todos e todas  que ali praticavam a  selvageria  medieval de condenar, julgar e sentenciar  “draconicamente”  o comportamento  e o senso estético da mesma. O que aproxima esta aluna de Hipátia,  além do sexo,   é o “erro” de querer mostrar o que têm de atributos: sejam físicos ou de conhecimento. 

Numa sociedade onde cada vez mais as pessoas tendem a acreditar que são o que têm,  visibilidade significa “chamar a atenção”. Isto se traduz em nossa cultura de mercado em consumir  determinadas marcas e seduzir para se sentir existindo. Sedução e consumo estão muito próximos: as pessoas consomem para se tornarem algo agradável ao outro (e a si mesma) e assim garantirem a  sua existência. Em última instância, quem consome quer ser “consumida” (observada) pelo outro, em outras palavras, ela também vira uma mercadoria.

 O erro da aluna,  foi ultrapassar o limiar da permissividade social.   Por querer se sentir desejada seduz; controla através de sua feminilidade o desejo masculino e, concomitante,   dispara a inveja feminina.  Pressionada por se sentir desejada e quando desejada humilhada por ser fútil e atrevida.

É importante pensarmos se não temos reproduzido nos tempos atuais o mesmo preconceito constituído na  baixa idade média. Como argumento, podemos mudar o gênero da aluna e perguntar se aconteceria a mesma coisa caso invertêssemos  o sexo e ao invés de ela fosse ele que estivesse desfilando seus atributos físicos pelos corredores da universidade.   Talvez sobrasse algum tipo de escárnio acusando-o de “Galo” o que, convenhamos, é bem diferente da sinonímia “Galinha”.


Felipe Aço


[1]  http://www.youtube.com/watch?v=r6zFfnQ8M0M
[2] Sobre Hipátia, vale assistir um filme lançado recentemente chamado “Ágora” que relata o que ocorreu nesta época e o desfecho  trágico de sua vida. http://www.youtube.com/watch?v=MxAUCcfMdcQ&feature=related






terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sentir e Pensar

                                                  Tenho tanto sentimento
                                                  Que é freqüente persuadir-me
                                                  De que sou sentimental,
                                                  Mas reconheço, ao medir-me,
                                                 Que tudo isso é pensamento,
                                                 Que não senti afinal.

                                                Temos, todos que vivemos,
                                                Uma vida que é vivida
                                                E outra vida que é pensada,
                                                E a única vida que temos
                                                É essa que é dividida
                                               Entre a verdadeira e a errada.

                                               Qual porém é a verdadeira
                                               E qual errada, ninguém
                                              Nos saberá explicar;
                                              E vivemos de maneira
                                              Que a vida que a gente tem
                                              É a que tem que pensar.
                                              Fernando Pessoa
                                              18-9-1933

domingo, 3 de outubro de 2010

Darwin e a Bicicleta

 E o Darwin? Alguém já se perguntou se ele tinha uma bicicleta?. Muito provavelmente sim, muito embora não conste em suas biografias. Darwin  prescreveu em seu livro Origens das Espécies, a sobrevivência do mais apto, e há que se pensar o que isso significa  em nossos dias.
Não está longe o tempo em que o automóvel não mais saíra de suas garagens, seja por excesso de trânsito, rodízio de veículos  ou sobretaxas de estacionamento e circulação proibitivas.  Devemos refletir um pouco sobre o que é esta adaptação,  traduzida por muitos como a sobrevivência do mais forte. Na verdade, o que está em jogo nunca foi o do mais forte, mas sim daquele que teve a maior capacidade de adaptação.  Fosse o mais forte, ainda hoje teríamos dinossauros vagando pelas planícies.
Essa lógica da adaptação  é interessante, pois no mundo moderno não “está por cima” quem sabe bater, mas aquele que é capaz de dialogar; não é melhor quem domina o outro(a), mas quem é capaz de se colocar no lugar do outro(a). Nem é  superior quem é maior e poderoso, mas quem tem inteligência e disciplina (vide, por exemplo, o caso do Japão). Tão pouco é melhor  quem dirige seu carro como se doma um cavalo xucro, mais cedo ou mais tarde a máquina de metal ou a “máquina” do coração cobram o ímpeto de tanta agressividade.
E nós, simples ciclistas na beira das estradas, quantas vezes não nos sentimos frágeis, indefesos e insignificantes diante do ônibus correndo para cumprir o horário;  do táxi impulsivo cuspindo os passageiros para poder,  o quanto antes,  empreender uma nova corrida. Dos carros,  praticamente vazios de pessoas,  e mais ainda de sentimentos; mas cheios de si,  desconhecendo ciclistas, pedestres, animais  pois, “tempo é dinheiro” e a rua é dos carros...
Os sociólogos já anunciavam em meados do século xx: “Bem vindos a selva de pedra, a civilização”. Civilização? Civilizar não é tornar os bens sociais comuns em direitos e deveres a todos? Infelizmente muitas pessoas deturparam as teses de Darwin entendendo que as melhorias ocasionadas pela “seleção natural”, isto é, o aprimoramento genético oriundo da adaptação ambiental e presentes nas gerações subseqüentes, significaria  priorizar os “mais inteligentes”, “sábios” e “geneticamente superiores” como uma forma de perpetuar a espécie mais capaz (Triste tese esta que deu margem ao nazismo no início do século XX).  O fato é que para muitos,  ser inteligente, capaz, bem sucedido e ter sucesso significa  ser esperto, ambicioso, ter posses e um bom  “marketing pessoal”.
Não basta ser inteligente, esta inteligência deve servir para produzir mais dinheiro. Não basta ser capaz, mas esta capacidade  tem que se sobrepor a dos outros, pois, afinal, ninguém quer se sentir o último...o “fracassado”. Não basta ter posses, é necessário ostentá-las. Para isto, visto uma marca não uma roupa, calço um tênis que tem o mesmo preço que uma televisão de 32 polegadas e dirijo um automóvel a cada ano, pois ele é o “cartão de visitas” do meu sucesso.  Triste mundo este em que o automóvel se converteu na vitrine da nossa auto-estima!
A sociedade do “individualismo automotivo” é a mesma das neuroses, da solidão, da angústia, da desrealização e da falta de sentido para a vida.  Eu me pergunto, diante disso tudo, se não nos desviamos do caminho e de fato confundimos adaptação com força e hoje buscamos nossa autonomia e originalidade querendo ser o que não somos, demonstrar superioridade, ao invés de adequação, poder ao invés de humildade; agressividade ao invés de competitividade...
A selva de pedra e asfalto respeita a lógica da massa, que na lei da física depende da densidade e do volume. Em outras palavras, na regra informal das ruas, manda quem  tem mais visibilidade, ou seja, quem tem tamanho. Este tamanho,  que sempre foi sinônimo de força,  não é o mesmo  que a adaptação. Por isso Hitler sucumbiu ao inverno russo e os dinossauros a escasses de alimentos.
O culto ao automóvel nutre-se do status e da representação que a cultura ocidental lhe atribuiu. Nosso ego, e o conseqüente sentimento de identidade, acredita ser esta representação o final último da existência. 
Alguma coisa está errada quando precisamos “ter”, ou representar ter, para nos sentir existindo. Dizia o poeta T.S. Eliot que “Em um mundo de fugitivos quem vai na direção contrária parece que está fugindo”. Muitas vezes nós ciclistas parecemos estar fugindo, porque de fato estamos. Fugindo de um mundo que perdeu o senso de integridade da vida. De uma sociedade que ignorou o outro em benefício do indi-víduo, de um espaço público que privilegia o forte e fragiliza o fraco (o menor). 
O ciclista em nosso país vive uma eternidade a cada minuto, pois é obrigado a se adaptar a todo o instante. Na certa não somos os mais fortes, mas somos mais a cada dia,  e  mais  aptos a cada geração. Nossa força está na insistência, determinação  e integridade conosco próprios, com os outros, com a vida e com o mundo. Resta desejarmos que  esta evolução  seja   antes de consciência. 

Sobre Tempo, Ecologia e Bicicleta

                                                                                                                                      
                                                                  
              Se existe alguma criação humana que mais se integre ao meio onde vivemos, esta coisa só pode ser a bicicleta. O progresso, já diziam os estudiosos da ciência, exige sacrifícios. Infelizmente, em nossa era esse sacrifício concretizou-se em desmatamentos, poluições, acúmulo de lixo, energia suja, mazelas sociais, empobrecimento, etc. A terra tem pago um preço muito elevado e ainda são poucos os que têm aquela consciência do índio Seatle que disse: “Tudo que acontecer a terra acontecerá aos filhos da Terra”. 

                  A humanidade caminha na contramão da vida. Ao invés de pensarmos na preservação das florestas, mares e pântanos; queimamos as árvores, jogamos toda a espécie de detrito no mar e assoreamos os pântanos. Jamais vi na televisão um governo baixar o IPI das bicicletas, tão pouco vejo algum programa de governo que incremente a construção de ciclovias na cidade. Por outro lado, vejo redução de impostos para a produção e comercialização de carros, incentivo a exploração imobiliária em áreas de preservação, incremento das industrias sem o devido controle sobre a poluição gerada.

        Nem sempre dá “tempo” para percebermos o que está acontecendo com o nosso planeta. Aliás, tempo é algo difícil de mensurar em nossos tempos (desculpando o trocadilho). Ninguém tem tempo! Nosso tempo é o dos bits, dos Mega e Gigabytes, dos supersônicos, jatos e carros. Ninguém tem tempo para enxergar o que aí está, pois vivemos as presas num carro vazio, numa conexão rápida e em relações efêmeras. Esse mesmo tempo que não temos, faz a vida passar muito rápida diante de nossos olhos. Paisagens invisíveis, imagens fugidias.... Não capturamos nada....A vida vai e com ela o nosso planeta, o nosso continente, o nosso país, o estado, a cidade, o bairro, a rua, nossa própria alma.

         Não há como perceber o mundo quando não nos comprometemos com ele. A experiência de pedalar é algo tão sutil que mesmo sem perceber, tomamo-nos como que integrados a natureza: sentindo as paisagens, considerando os pedestres, cuidando o lixo jogado, etc. O tempo do pedal não é o mesmo do cilindro. O ciclista está inteiro seja onde estiver. “Para ser grande, sê inteiro”, dizia o poeta. Para ser inteiro, há que se respeitar a integridade maior que é essa nossa mãe Terra desprezada, humilhada, mas ainda assim, linda e gloriosa.


        Os ciclistas são naturalmente ecológicos; os que ainda não o são, falta-lhes aprender o exercício da desaceleração.
                                                                                Felipe André Aço