domingo, 10 de outubro de 2010

A construção de Gênero: feminino negado

O que é ser homem  e mulher em nossa sociedade e cultura? Indo um pouco mais além, o que é ser “gay”, travesti ou qualquer outra nomenclatura que se use para denominar a diversidade de identidades e da conduta sexual?  A referência que todos nós temos ao nascer é o nosso sexo biológico, aquilo que morfologicamente  trazemos de nossa herança genética. Em outras palavras, somos do sexo feminino ou masculino. O que construímos em termos  de identidade e personalidade vai depender, entre outros fatores, de nossa vivência, nossa cultura, família e possibilidades. Esta configuração de ser é o que chamamos de identidade de gênero.




 Em nossa sociedade existem muitas configurações de identidades de gênero. Para cada uma delas somam-se um universo de idéias, suposições, expectativas e preconceitos. Nem sempre a identidade  biológica está em convergência com a identidade de gênero. Ainda assim, há uma necessidade de “ajuste” do indivíduo a expectativa  social, isto é, ao lugar de homem e mulher.

O gênero masculino e feminino tem uma história de construção social e cultural  de milhares de anos em nossa cultura ocidental.  O lugar  de quem supre, de quem é forte, ativo, dominante e referência foi consolidado por milhares de anos de evolução da humanidade e reafirmado na Idade Média com  o domínio da igreja. O homem tomou lugar de quem coordena, dirige e decide. A mulher, pelo contrário, coube a função de ser mãe, meiga, “doce”, servil e submissa.

É certo, porém, que estes lugares ocupados tanto por homens quanto por mulheres em nossa civilização, vem mudando muito nestes últimos  40 anos.  Hoje,  grande parte das mulheres trabalham fora de casa, o que não acontecia em gerações precedentes. Da mesma forma, as mulheres têm conquistado o espaço acadêmico e são, hoje,  maioria nas universidades.  Por seu viés, os homens  também vêem em um processo de trans-formação de papéis:  isso pode-se constatar  na sua relação com os filhos e o compromisso com a casa e os afazeres domésticos.

Muito embora os papéis que vimos desempenhando na contemporaneidade estejam se transformando e intercambiando a mutação subjetiva, isto é, o nosso jeito de ser, sentir e perceber o outro não muda com a mesma rapidez e intensidade.

As mulheres hoje trabalham, mas ainda causa desconforto ao marido quando a mesma ganha mais do que ele. Elas não só podem, como devem  ter desejo sexual. Vale lembrar que durante toda a idade média até meados do século XX a idéia de sexo estava atrelada a reprodução. Aos homens se fazia “vistas grossas” quanto a necessidade instintiva de sexo. Quanto a elas, era pudico se preservar para o marido. Mesmo depois de casadas,  o ato sexual sem a intenção reprodutiva era um pecado grave, pois impingia o prazer.  O prazer, como todos sabem, já havia sido execrado junto com Adão e Eva do Paraíso.  Da mesma forma, hoje as mulheres podem exercer qualquer profissão, mas há quem desconfie das mesmas pilotando aviões, dirigindo ônibus ou sendo juízas de futebol e o velho preconceito quanto as mulheres no trânsito é reafirmada constantemente: “só podia ser mulher!”

Um filme antigo, mas muito interessante chamado “Acorda Raimundo”[1] expõe com ironia o “lugar” de homem e mulher  em nossa sociedade. Neste vídeo, o homem e a mulher invertem os papéis. Embora  as condutas masculino-feminino estereotipadas no filme  não sejam hoje  tão rígidas,  é evidente o preconceito  que erigimos em nossa sociedade. As diferenças segmentadas nos papéis que cada gênero desempenha ficam em evidência no vídeo. Surpreende-nos pela perspectiva de que algo tão corriqueiro possa ser ao mesmo tempo dramático quando se invertem os papéis. 

O comportamento de gênero é parte de um processo de subjetivação. Em outras palavras, a educação, a família, a publicidade, a política a cultura  vão inundando a nossa psique com símbolos, signos, regras, marcas, hábitos e condutas que tornam real e verdadeiro aquilo que é da construção social.  Por isso somos subjetivados,  por assumir como nossas íntimas verdades conceitos e modos de ser  que são construções histórico-culturais.

 Essas nuances que  constituem nossa subjetividade, dizem respeito, por exemplo,  a frases do tipo:  “menino não chora” ou  “isso é com o teu pai”  quando se quer  referir a alguma atitude mais enérgica que deva ser exercida, tais como quando estas envolvem dinheiro e limites. Nas trocas e confissões amorosas, a mulher, muitas vezes expõe na fala a condição de dependência que historicamente foi assumindo: “eu sou tua”, é a condição de dependência aprendida. Ao homem é dado a autonomia; a mulher,  a heteronomia ou a alienação de sua  autonomia ao outro. No campo da linguagem, ao   homem é delegado o patrimônio;  a mulher, o matrimônio.  Não é por isso, por sinal, que o pai dá a mão da filha para o noivo? “Para troca de propriedade?” Não pertence mais ao pai, mas agora é do marido. Cabe a ela perseverar no matrimônio. Até bem pouco tempo atrás não era permitido a elas terem seus nomes atrelados a propriedades, visto elas também serem uma, haja vista, por exemplo, a inscrição do sobrenome do marido em seu próprio nome, como um “registro” ou certificação.   

Ao homem é dado a atividade, a mulher, a passividade. Neste segmento sofre a mulher, mas igualmente, o homem que tem que “manter a sua fama de mau”, ou garantir ser tão forte, violento e agressivo quanto é a expectativa social do masculino. Àqueles que não conseguem isso, certamente sente-se deslocados socialmente.

Não é de hoje que a mobilização feminina gera reações institucionais e coletivas. Alexandria no Egito no século IV  viu surgir  uma mulher  chamada HIPÁTIA[2]   que foi uma das únicas mulheres da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa. Ela trabalhou na lendária biblioteca de Alexandria substituindo aos 30 anos o cargo de professor,  do não menos importante Plotino. Também foi diretora desta Academia onde estudou e ajudou a criar o astrolábio, o planifério (espécie de mapa)  e o hidrômero (hidrômetro).

Por ensinar que o universo era regido por leis matemáticas, Hipátia foi  considerada herética. Em 415 instigados por Cirilo – bispo de Alexandria – Hipatia foi atacada por cristãos enfurecidos levada a uma igreja, esfolada com  cacos de cerâmica e conchas e após assassinada, seu  corpo foi atirado em  uma fogueira.  Qual foi o erro de Hipátia? Estudar, pesquisar, conhecer eram atributos comuns a uma certa classe masculina da época. Mas, ainda assim, foi ela a perseguida e morta. Talvez o erro de Hipátia tenha sido o de querer existir indo além do comum obtendo, portanto,  visibilidade.

Pode-se argumentar que esta é uma história que aconteceu 1600 anos atrás, logo  não conta para se falar de violência contra mulher ou violência de gênero que hoje estamos presenciando.  No entanto, podemos “lançar mão” de um outro exemplo, acontecido  em 2009 em São Bernardo do Campo-SP:

Uma universitária é vilipendiada, execrada, humilhada e ofendida  por cometer o crime de usar uma saia “indecente”. O que aconteceu com ela?  Não foi esquartejada como fora Hipátia porque houve a intervenção policial. Afora isso, teve sua integridade atingida, sua moral  destroçada e com certeza sua auto estima leiloada por todos e todas  que ali praticavam a  selvageria  medieval de condenar, julgar e sentenciar  “draconicamente”  o comportamento  e o senso estético da mesma. O que aproxima esta aluna de Hipátia,  além do sexo,   é o “erro” de querer mostrar o que têm de atributos: sejam físicos ou de conhecimento. 

Numa sociedade onde cada vez mais as pessoas tendem a acreditar que são o que têm,  visibilidade significa “chamar a atenção”. Isto se traduz em nossa cultura de mercado em consumir  determinadas marcas e seduzir para se sentir existindo. Sedução e consumo estão muito próximos: as pessoas consomem para se tornarem algo agradável ao outro (e a si mesma) e assim garantirem a  sua existência. Em última instância, quem consome quer ser “consumida” (observada) pelo outro, em outras palavras, ela também vira uma mercadoria.

 O erro da aluna,  foi ultrapassar o limiar da permissividade social.   Por querer se sentir desejada seduz; controla através de sua feminilidade o desejo masculino e, concomitante,   dispara a inveja feminina.  Pressionada por se sentir desejada e quando desejada humilhada por ser fútil e atrevida.

É importante pensarmos se não temos reproduzido nos tempos atuais o mesmo preconceito constituído na  baixa idade média. Como argumento, podemos mudar o gênero da aluna e perguntar se aconteceria a mesma coisa caso invertêssemos  o sexo e ao invés de ela fosse ele que estivesse desfilando seus atributos físicos pelos corredores da universidade.   Talvez sobrasse algum tipo de escárnio acusando-o de “Galo” o que, convenhamos, é bem diferente da sinonímia “Galinha”.


Felipe Aço


[1]  http://www.youtube.com/watch?v=r6zFfnQ8M0M
[2] Sobre Hipátia, vale assistir um filme lançado recentemente chamado “Ágora” que relata o que ocorreu nesta época e o desfecho  trágico de sua vida. http://www.youtube.com/watch?v=MxAUCcfMdcQ&feature=related






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